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História

Foto do sambaqui da Duna da Boa Vista em Cabo Frio
Foto do sambaqui da Duna da Boa Vista, Cabo Frio

A Duna Boa Vista, mais conhecida como Duna Preta, é um sítio arqueológico do tipo sambaqui que apresenta indícios de ter sido um acampamento de pesca e coleta de moluscos. Faz parte do Patrimônio Histórico e Cultural e é tombado pelo IPHAN.
- Esquerda: sítio antes do cercamento (https://www.folhadoslagos.com/geral/duna-boa-vista-na-praia-do-forte-recebe-cerca-de-protecao-nesta/15079/)

- Direita: cercamento para proteção do sítio (https://fontecerta.com/agentes-do-meio-ambiente-de-cabo-frio-fazem-cercamento-da-duna-preta-na-praia-do-forte/)

Ótimo climático e mudanças culturais

O Ótimo Climático foi um período de equilíbrio no clima da Terra, nem muito quente, nem muito frio, que ocorreu há cerca de 6.000 anos AP (antes do presente). Nesse clima favorável à biodiversidade e à vida, grandes mudanças culturais estariam em curso na Amazônia.

 

Clima favorável significa ficar e curtir mais o lugar, em vez de viver correndo atrás de abrigo e comida, por assim dizer. Lá pelos anos 4.000 A.P começa a ocorrer uma mudança de costumes nas populações caçadoras-coletoras (ou pescadoras-coletoras no litoral): passam a se tornar mais sedentárias e domesticar animais e plantas, tornando-se agricultoras. Aparece, então, a cerâmica, tanto na Amazônia quanto no litoral. Se antes utilizavam instrumentos feitos de pedras, conchas e ossos, agora passam a usar panelas, facas de pedra e moedores, além de urnas funerárias feitas de barro queimado.

 

Essa ebulição cultural faz com que a sociedade na época experimente a explosão demográfica. Com grandes aldeias surgindo na Amazônia, no Brasil Central e no Pantanal, há mais ou menos 2.000 anos AP, os grupos tribais sentiram a necessidade de se deslocar.

Foto de enterramento no Sítio do Caju, em Campos dos Goitacazes

Enterramento localizado no Sítio do Caju, Campos/RJ.

Ceramistas: a Tradição Una

Por essa época começa a aparecer a cerâmica também aqui na nossa região. Ela estaria associada à comunidades agricultoras da Tradição Una, presentes no vale do rio São Francisco, mais especificamente na área cárstica atualmente pertencente ao Estado de Minas Gerais. O rio Paraíba do Sul teria servido, de início, como uma barreira natural aos caçadores-coletores primitivos, porém, posteriormente, serviu como rota migratória para que os ceramistas ocupassem o território fluminense, compondo um segundo estágio de ocupação. Estes grupos teriam subido o curso do rio São Francisco e do rio Grande até alcançarem as cabeceiras da Serra do Mar. Neste ponto, teriam descido sua vertente Atlântica, concentrando-se nas beiras dos rios Una e São João.

Segundo Dias Jr. (1976/77)*2, a tradição Una no Rio de Janeiro está dividida em duas fases: a fase Mucuri localiza-se na região norte do Estado, no baixo e médio Paraíba do Sul e na região serrana. Esta fase parece não ter desenvolvido sua economia com base na exploração dos recursos marinhos, ficando no contato entre a planície litorânea e a encosta da Serra do Mar. Provavelmente pela mesma época, outros grupos, da fase Una, ocupavam áreas localizadas mais para o litoral, inclusive, locais anteriormente habitados pelos grupos sambaquieiros.

Pesos de rede de cerâmica encontrados no Sítio Grande do Una, Cabo Frio, RJ

Pesos de rede de cerâmica encontrados no Sítio Grande do Una, Cabo Frio, RJ (foto: E.Pinheiro).

Contato entre os povos do interior e do litoral

 

As pesquisas da arqueóloga Jeanne Cordeiro na região sugerem que, num primeiro momento, houve uma relação de troca entre os sambaquieiros da costa e os ceramistas do interior. Porém, por serem mais numerosos e possuidores de tecnologia superior acabaram por colonizar o litoral, desestruturando o sistema social dos antigos povos dos sambaquis.

 

Alguns autores dizem que a chegada dos ceramistas Una não implicou em nenhuma mudança na economia regional litorânea. Dizem também que o contato entre os ceramistas, os sambaquieiros e os tupinambás litorâneos da Tradição Tupi-Guarani (Fase Itaipu) teria sido pacífico. Porém, para outros pesquisadores, há registros, em grande parte das ossadas humanas encontradas, com sinais de violência. Para eles, a convivência pacífica entre estes grupos é improvável pois, em primeiro lugar, o território dos sambaquieiros foi, literalmente, invadido e, em segundo lugar, a sociedade Tupinambá tinha em sua essência a guerra e/ou a disputa corporal, muito diferente dos habitantes primitivos da costa.

"Índia Tupi", de Albert Eckhout (1641)
"Índio Tupi", de Albert Eckhout (1643)

Tupinambás: indígenas presentes na costa quando os colonizadores chegaram.

- Esquerda: "Índia Tupi", de Albert Eckhout (1641) (ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira, 2021)

- Direita: "Índio Tupi", de Albert Eckhout (1643) (ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira, 2021)

OS DESCENDENTES

As pesquisas arqueológicas conduzidas na região são poucas, mas por enquanto já forneceram condições para a construção da hipótese de que os grupos pertencentes à tradição Una estão relacionados ao grande tronco linguístico Macro-Gê - dos Tapuia - proveniente do Brasil Central (aquele que veio trazendo a cultura da cerâmica). Isso já parece ser um consenso. Esse tronco é representado no Rio de Janeiro por várias famílias. A Família Puri possui aqui 12 tribos, dentre elas os Goitacá, Puri, Sacarus, Coroado, Coropó e Guarulho (assim mesmo, no singular). Outra família importante em nosso trabalho é a dos Botocudos ou Aymorés.

"Aldea des Tapuyos" (Aldeia de Tapuias) - Johann Moritz Rugendas - 1835

"Aldea des Tapuyos" (Aldeia de Tapuias) - Johann Moritz Rugendas - 1835

"Puri" - Johann Moritz Rugendas - 1835

"Puri" - Johann Moritz Rugendas - 1835

Pintura "Cabeças de diferentes castas de selvagens" de Jean Baptiste Debret -  entre 1834 e 1839

"Têtes de différentes castes sauvages". (Cabeças de diferentes castas de selvagens) - Jean Baptiste Debret -  entre 1834 e 1839. 1. Iouri; 2. Maxuruna (Machourouna); 3. Iouripassé; 4. Mura (Moura); 5. Bororeno; 6. Iouma; 7- Coroado; 8- Botocudo; 9- Femme Puri; 10- Botocoudo (momifiée); 11- Puri (momifiée).

Pintura "Dança dos Puris" - Van de Velden, Johann Baptist von Spix, Karl Friedrich Philipp von Martius - entre 1823 e 1831
Pintura "Danse des Puris" (Dança dos Puris) - S. Cholet, Ferdinand Denis, Charles de Lalaisse - 1846
Pintura "Puris nelle loro foreste" (Puris em sua floresta) - Migliavacca - entre 1823 e 1838
Pintura "Danse des Purys" (Dança dos Puris) - Johann Moritz Rugendas - 1835

Diferentes representações dos Puris:

- Esquerda (acima): "Tanz der Purís" (Dança dos Puris) - Van de Velden, Johann Baptist von Spix, Karl Friedrich Philipp von Martius - entre 1823 e 1831

- Direita (acima): "Puris nelle loro foreste" (Puris em sua floresta) - Migliavacca - entre 1823 e 1838

- Esquerda (abaixo): "Danse des Puris" (Dança dos Puris) - S. Cholet, Ferdinand Denis, Charles de Lalaisse - 1846

- Direita (abaixo): "Danse des Purys" (Dança dos Puris) - Johann Moritz Rugendas - 1835

Márcia Malheiros (2008)*3 relata que viajantes naturalistas do século XIX, como, por exemplo, Jean Baptiste Debret*4, acreditavam que os Coroado, os Coropó e os Puri eram descendentes dos Goitacá, que por muito tempo dominaram o litoral entre os rios São João, São Pedro, Macaé e Macabu, até os limites territoriais dos Aimorés, na Serra dos Órgãos, hipótese sustentada inclusive pela semelhança entre a língua falada por eles (todas classificadas como não-Tupi). Essa tese tem adeptos e críticos.

As crônicas seiscentistas revelam fartos relatos dos Goitacá, inclusive sobre o período de paz entre estes e os portugueses, que facilitou a redução de parte dessa tribo, seja pelas epidemias trazidas, seja pela guerra injusta. Houve, então, uma debandada desses indígenas durante o século XVI, em direção às matas, até Campos dos Goitacazes, onde já havia muitos deles, e Minas Gerais. Curiosidades como o fato de terem, em sua jornada, conquistado os Coropó e passado a ser chamados de Coroado, devido à forma de cortarem seus cabelos, são uma história contada por diversos autores (CORDEIRO, 2005)*5.

 

Os Goitacá, grupo de indígenas guerreiros, foram erroneamente tidos como bárbaros por alguns viajantes europeus, o que demonstra a visão colonialista da época acerca dos nativos que se opunham ao monoculturalismo cristão e/ou ao universalismo  civilizado. Segundo Lamego (1940)*6, viajantes e cronistas como Simão de Vasconcelos, Couto Reis e August de Saint-Hilaire afirmaram em seus relatos que os índios da nação Goitacá, respectivamente, “eram os mais terríveis índios dos Brasis”, “audazes, destemidos, vigilantes” e “sabiam manejar o arco com destreza”.

Desenho "O Índio Goitacá" de João de Oliveira - s/d

"O Índio Goitacá" - João de Oliveira - s/d

Indígenas Goitacás de Newton Rabelo - sem data

s/n - Newton Rabelo - s/d

"_ De que nação és? perguntou-lhe o cavaleiro em guarani.
_Goitacá, respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez.
_Como te chamas?
_ Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo"

José de Alencar: O Guarani

Século XVI - Colonização

 

 

colonização da região pelos conquistadores se deu, basicamente, através da exploração da madeira (retirada das serras, transportada pelos rios navegáveis que posteriormente também trariam o ouro de MG, e escoada pelos portos, principalmente o de Barra de São João, que também escoaria a produção cafeeira oriunda de Cantagalo) e da agricultura (cana-de-açucar, cereais e café).

Pintura "Defrichement d'une Forêt" (Derrubada de uma floresta) - Johann Moritz Rugendas - entre 1827 e 1835

"Defrichement d'une Forêt" (Derrubada de uma floresta) - Johann Moritz Rugendas - entre 1827 e 1835

Em 1504, ocorre o estabelecimento de uma feitoria em Cabo Frio. Desde esta época até cerca de 1530 (ano que marca o final do período pré-colonial e o início do colonial), corsários franceses - traficantes de pau-brasil - incursionam pelo litoral fluminense, utilizando Cabo Frio como base de suas operações.


No ano de 1572, El Rey D. Sebastiam divide o Estado em dois, ficando São Sebastião como a capital do Estado Meridional, o qual foi entregue ao Douthor Antonio Salêma. Este, auxiliado pelo capitão-mor de São Vicente, deu guerra aos índios de Cabo Frio e pacificou o território entre a cidade de São Sebastião e Macaé. Foram mortos muitos dos Tamoios, escravizados outros tantos, e alguns incorporados aos aldeamentos jesuíticos. Quem pôde emigrou para o sertão. Por fim, Constantino Menelau, depois de vencer os franceses de Cabo Frio, obstruiu o porto, e Estevão Gomes estabeleceu por lá uma pequena fortaleza.

 

“Flagelados pelas bexigas, os Guaitacáa aproximaram-se dos brancos que os poderiam socorrer” (ABREU, 1907). 

 

O jesuíta Domingos Rodrigues, juntamente com Álvaro Rodrigues Adôrno, conseguiu sustentar a pacificação dos Aimorés (Botocudos). Os temidos Tapuia do litoral cessam, temporariamente, a devastação que se extendia do Rio de Janeiro a Salvador, reaparecendo somente mais tarde. Cresce a inimizade entre as três raças presentes no litoral do Brasil.

Século XVII - Ou como escravizar um indígena

O indígena, para a realeza, servia para "gerar riquezas”. No século XVI, os missionários administraram as aldeias com exclusividade, detendo o poder, tanto espiritual quanto temporal, sobre elas. Já no século XVII, quando a mão-de-obra indígena havia se tornado escassa, os padres tiveram que compartilhar o poder com os colonos que, em vários momentos, obtiveram - e depois perderam - o direito de governar essas aldeias.

Os descimentos eram expedições, em princípio não militares, realizadas por missionários, com o objetivo de convencer os índios que “descessem” de suas aldeias de origem para viverem em novos aldeamentos especialmente criados para esse fim, pelos portugueses, nas proximidades dos núcleos coloniais. Esses aldeamentos missionários, chamados também de “aldeias de repartição”, funcionavam como uma espécie de “armazém” onde os índios, uma vez descidos, eram "estocados". As aldeias possuíam uma igreja ou capela, uma escola e casas para cada família, bem diferentes das malocas comunitárias e da vida que os índios levavam em suas aldeias de origem. Em 1611 foi promulgada uma lei (Lei de 10 de Setembro de 1611) onde os descimentos, embora ainda exigissem a presença de um missionário, passavam a ser realizados com escolta militar e comandados por colonos (“capitães de aldeia”).

Pintura "Soldados índios da província de Curitiba, escoltando índios prisioneiros", de Jean Baptiste Debret - entre 1834 e 1839

"Sauvages civilisés soldats indiens de la province de la Coritiba, ramenant de sauvages prisonnières." (Soldados índios da província de Curitiba, escoltando índios prisioneiros) - Jean Baptiste Debret - entre 1834 e 1839.

Em 1614, embora sem êxito, os ingleses tentam, com o auxílio dos Tamoio e dos Goitacá, inimigos dos portugueses, estabelecer uma feitoria em Cabo Frio, em busca do pau-brasil. No ano seguinte, para garantir a posse das terras brasileiras, os portugueses, comandados por Constantino de Menelau, governador da Capitania do Rio de Janeiro e acompanhados de 400 índios provenientes de Sapetiba (Sepetiba), saem do Rio de Janeiro e lançam os fundamentos da cidade de Santa Helena (Cabo Frio) a 13 de Novembro de 1615, a qual é entregue a Estevão Gomes, nomeado “capitão-mor do Novo Povo”, que começa a povoá-la distribuindo terras por sesmarias. O ano de 1615 também é o ano de criação da Sesmaria de Campos Novos (na margem direita do rio São João).

No ano de 1616, é instalado o município de Cabo Frio, sob a denominação de N. S. da Assumpção de Cabo Frio (15 de Agosto de 1616). Por despacho de 31 de Maio de 1616 (confundido com o dia 16, de acordo com http://www.cmspa.rj.gov.br/historia.aspx), o capitão-mor concedia as terras pedidas, tanto as da ponta dos Búzios ou do Una (segundo a escolha dos padres), como as da "Jacaruna". Foi, então, fundado o aldeamento de São Pedro do Cabo Frio pelos padres da Companhia de Jesus, com 500 índios “Aitacazes” vindos da Capitania do Espírito Santo, mais precisamente, do aldeamento da Reritiba (Anchieta) na localidade escolhida por João Lobato, ou seja, em Jacuruna.

Em 1619, uma missão jesuíta e alguns colonos da Sesmaria de Campos Novos instalam-se na Barra do rio Peruíbe (nome indígena do atual rio São João), fundando o Arraial de Barra de São João, erguendo lá uma capela em homenagem a São João Batista. Em 1623, após a fundação das cidades de Cabo Frio (1615) e da Aldeia de Índios de São Pedro (1617), os jesuítas receberam duas grandes doações de terras na região, as Sesmarias do Rio Una e de Búzios.

A relação entre os bandeirantes (colonos paulistas) e os jesuítas inacianos, que já era péssima e tinha destruído inúmeras reduções jesuítas, leva os padres a agirem no sentido de parar o avanço do bandeirantismo. É promulgado o Breve de 1639 (a 22 de Abril de 1639), carta que detinha poder de lei e que advoga uma liberdade bastante singular e histórica. Ela devolve o controle aos missionários, o que revoltou os moradores colonos, que ameaçaram expulsar os jesuítas do Rio de Janeiro.

A Lei de 1 de Abril de 1680 (Ley sobre a Liberdade do Gentio do Maranhão) proibiu que os índios fossem escravizados, declarando-os “livres”. Na realidade, seu objetivo era concentrar os índios, de nações e culturas diferentes, em um local de fácil acesso, onde pudessem ser catequizados e “civilizados”, aprendendo os princípios da religião cristã e valores como obediência e disciplina, que os tornavam aptos para serem integrados ao sistema colonial como força de trabalho. Aí, depois de catequizados, eram "alugados e distribuídos" - repartidos - entre os colonos, os missionários e o serviço real da Coroa Portuguesa, para quem deviam obrigatoriamente trabalhar em troca de um pagamento, por um determinado período - que variou de dois a seis meses - findo o qual, deveriam ser devolvidos à aldeia.

Os indígenas que chegaram ao final do período colonial vivendo em "aldeias de repartição" acabaram por adquirir boa parte dos costumes portugueses, inclusive a língua. É o caso de grupos Tupi, Guarulho e Goitacá das aldeias de São Lourenço, São Barnabé, São Francisco Xavier, N. Sra. da Guia, Aldeia de São Pedro, Sto. Antônio de Guarulhos, a Aldeia de Ipuca e a posterior Aldeia da Sacra Família de Ipuca. Esses grupos são chamados pelos especialistas de índios catequizados ou caboclos.

Pintura "Caboclo/Índio Civilizado", de Jean Baptiste Debret - 1834.

"Cabocle. (Indien Civilisé)." (Caboclo/Índio Civilizado) - Jean Baptiste Debret - 1834.

Nas aldeias de repartição, que seria o caso da Aldeia de Ipuca, os índios escapavam da escravidão, embora não do trabalho obrigatório. Por isso, sempre que podiam, fugiam das aldeias. A fuga era um dos motivos do esvaziamento das aldeias. Outro era o fato de que muitos moradores não devolviam os índios às aldeias no prazo estipulado e criavam mecanismos, como o casamento, para retê-los de forma permanente em seus estabelecimentos particulares. Os colonos casavam índias escravas de sua propriedade com índios a eles alugados por alguns meses. No momento de devolvê-los à aldeia, recusavam-se a fazê-lo, alegando o vínculo sagrado do matrimônio. Essa forma paralela de transformar o índio de repartição em escravo tornou-se tão usual que, no final do século XVII, para coibi-la, o governador do Rio de Janeiro proibiu formalmente esse tipo de casamento, o que foi aprovado por Carta Régia de 30 de Outubro de 1698.

Século XVIII - Aldeias de Ipuca e da Sacra Família de Ipuca

 

No ano de 1700, é fundada a Aldeia de Ipuca pelo capuchinho italiano (um ramo de Franciscanos) Francisco Maria de Todi. Três cronistas (fontes primárias citadas nas referências) descrevem, no século XIX, essa fundação: dizem que o próprio capuchinho teria penetrado nos sertões e trazido os índios Guarulhos de suas habitações, na serra dos Órgãos ("Sertão de Macacù"), os quais se sujeitaram à civilização e foram batizados, ali, “na âldea fundada na raiz das montanhas orientaes dos Aymorés, junto á nascente do ribeiro que tomou o nome do rio Aldêa Velha, o qual junctando-se ao Ipuca (provavelmente o atual rio Quartéis, comentário nosso) correm ambos a lançar-se no rio de São João, que se afoga no oceano”. Já de  acordo outro cronista, o capuchinho italiano teria batizado os índios ainda em meados do século XVII, na aldeia fundada nas cabeceiras do rio Ipúca.

Pintura "Serra dos Órgãos", de Johann Moritz Rugendas - 1835
Desenho "Vale da Serra do Mar/Cadeia de montanhas perto do mar, de Jean Baptiste Debret - 1834.

- Esquerda: "Serra das Orguas." (Serra dos Órgãos) - Johann Moritz Rugendas - 1835.

- Direita: "Vallée da Serra do Mar" (Chaine de montagnes près de la mer) (Vale da Serra do Mar/Cadeia de montanhas perto do mar) - Jean Baptiste Debret - 1834.

Alguns autores citam o nome do italiano como Francisco Maria Táli, porém, de Todi parece ser a informação mais correta. Segundo informações pessoais em pesquisa no país de origem, a Província de Todi é uma localidade italiana conhecida por ser um refúgio de religiosos, justamente os franciscanos.


Os freis de Lucca e Cambiasca, responsáveis pela Aldeia de São Fidélis, são quem citam o difícil trabalho do capuchinho italiano Francisco Maria em conseguir manter os Guarulhos na Aldeia de Ipuca, primeiro núcleo populacional a ser fundado próximo do Arraial de Barra de São João e que deu origem à colonização de toda a região.

 

Pouco tempo após sua fundação, a aldeia foi transferida para as margens do "rio São João de Ipuca", onde começou a ser erguida, pelos próprios índios e com a ajuda dos fiéis, a capela dedicada à Sagrada Família (Jesus, Maria, José, Joaquim e Sanct’Anna). O capuchinho pedia as “esmolas” de porta em porta, desprovido de ajuda dos cofres reais. O término da construção da capela deu-se somente em 1748. Pelas palavras de Saint-Adolphe a igreja foi edificada “na parte inferior do rio, no sitio onde se acha a segunda aldea (…)”. Tempos depois, a Aldeia de Ipuca passa a ser dirigida, até 1761, pelo Pe. Silvestre de Porciuncula.

Alguns aldeamentos eram formados por índios que habitavam a própria região, como é o caso da aldeia de São Pedro do Cabo Frio, fundada em 1615, que agrupou índios Tupinambá e Goitacá da região, aos quais se juntaram mais tarde os índios Guarulho, descidos da Serra dos Órgãos. Os guarulhos foram distribuídos também entre outras três aldeias próximas ao litoral: N. Sra. das Neves (Macaé), Sto Antônio (Campos dos Goitacazes) e Sacra Família de Ipuca – que os recebeu, mas que, provavelmente, já era dos índios Goitacá.

A 25 de maio de 1741 foi publicada uma bula do Papa Benedito XIV que proibia a possessão de escravos índios. A 28 de dezembro foi publicada a lei da liberdade dos índios.

No ano de 1753, o prefeito dos capuchinhos, o Pe. fr. Jeronymo do Monte Real, consegue, do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade e Silva, uma data de terras para patrimônio da Aldeia de Ipuca, a qual compreendia “uma legua em quadra” em torno da capela (unidade de área de um quadrado cujos lados medem uma légua terrestre, sendo a maior unidade de area do sistema imperial e equivale a cerca de 23 km² ou 5.760 acres). Diante do sucesso na empreitada, o padre enviou mais um missionário pra a Aldeia – Frei João Batista de São João. No entanto, alguns anos depois, o empreendimento foi interrompido devido a uma disputa fundiária entre os capuchinhos e os jesuítas, proveniente de “questões entre os “nossos” índios e os escravos da fazenda dos padres jesuítas de Cabo Frio”, o que provavelmente não passava de concorrência entre as duas ordens religiosas. Deu-se ganho de causa aos inacianos e os capuchinhos abandonaram a missão, resultando em perda territorial. Esta pode ter sido a causa da nova mudança da Aldeia, agora para Barra de São João.

Enquanto isso, o governo continuava chamando os índios das aldeias para prestar serviços de caráter público e atender as exigências das autoridades, o que era considerado exorbitante pelos jesuítas. Os jesuítas começaram a recusar, sistematicamente, o fornecimento dos índios requeridos pelas autoridades, o que acabou contribuindo para aumentar ainda mais os pontos de atrito com a Coroa Portuguesa. Em 1755 volta a ser confirmada a liberdade outrora dada aos índios através da Lei de 1680. Poderiam trabalhar para quem entendessem, devendo todos os possuidores de escravos índios libertá-los. Ou seja, nunca deu certo: os índios que já estavam aqui incomodavam. Trouxeram outros de fora, que também incomodaram. Escravizaram-nos, mas eles "continuaram a incomodar". O jeito era libertar todo mundo, pois a coisa já não tinha mais jeito.

A Lei de 1757 retirava dos missionários a administração das aldeias, a qual deveria ser, doravante, feita por uma organização puramente civil. Essa lei foi, então, complementada pelo Alvará de 8 de Maio de 1758, o “Diretório dos Índios”, promulgado pelo cardeal F. de Saldanha. A 7 de Junho, o patriarca de Lisboa suspendeu os jesuítas do exercício de confessarem e pregarem na sua diocese. Apesar de não haver protestos, a lei não foi respeitada. O Diretório determinava que as aldeias deviam ser governadas por um diretor, responsável pela repartição dos índios. As misérias provocadas pelos diretores, direta ou indiretamente, são nefandas. Por fim, d. Francisco de Sousa Coutinho teve compaixão dos índios e conseguiu a revogação deste diretório. Chegava tarde a medida salvadora: o mal já estava feito.

No ano de 1759 são tomadas duas medidas que concretizam o golpe desferido contra os jesuítas: a primeira era a Carta Régia de 28 de Junho, que os proibia de ensinarem as disciplinas fundamentais da ação pedagógica da Companhia: latim, grego e retórica. O Marquês de Pombal, que estava à frente do Governo de Portugal como ministro todo-poderoso do rei, fez com que D. José I assinasse a Lei de 3 de Setembro, na qual os jesuítas foram declarados rebeldes e traidores, proscritos, foram desnacionalizados e, finalmente, expulsos do reino de Portugal e suas possessões.

Assim que o frei Francisco Maria de Todi (que não era jesuíta, mas capuchinho) partiu para a Europa, foi substituído pelos Padres Capuchos da Província da Conceição (portugueses) até o ano de 1761. Porém, esta mudança fez com que a maior parte dos índios voltassem para as matas, e suas terras fossem repartidas entre alguns brancos.

 

Em 1798 é revogado o Diretório dos Índios.

A expulsão dos jesuítas do Brasil acabou por modificar a ação missionária de catequese, transformando os índios em paroquianos. As igrejas, antes administradas pelos missionários da Companhia de Jesus, ficaram a cargo de padres seculares. As igrejas dos aldeamentos do litoral fluminense, como as de São Lourenço e de São Francisco Xavier de Itaguaí, por exemplo, adquiriram foros de freguesia, tornando-se "paróquias encomendadas". A capela da Aldeia de Ipuca adquire foros de Freguesia do Distrito de Cabo Frio com o nome de Sacra Família de Ipuca, assim subsistindo até entrar a "Classe das Firmes". Tal aquisição só veio a se efetivar no ano de 1800.

Sob a qualidade de "encomendado", foi enviado para a agora denominada Aldeia da Sacra Família de Ipuca um vigário, o padre Antonio Francisco Coelho, presbítero secular que administrava, entre outras coisas, os bens patrimoniais. Esse padre “cobrava o quinto das madeiras que se serravam nas terras da aldêa e que, descidas pelo rio de São João, eram commummente levadas ao Rio de Janeiro, o que não pouco concorreu para que de todo desapparecessem”. Seu sucessor, o padre Manoel Duarte Silva, viu a aldeia aos poucos perder lugar para as fazendas que retiraram toda a floresta das margens da lagoa de Juturnahyba e do rio de São João e suas vertentes.

Neste mesmo ano de 1761 a aldeia da Sacra Família de Ipuca, às margens do rio São João, recebeu imigrantes europeus, cumprindo assim uma das determinações pombalinas. Contudo, não foram somente indivíduos brancos que cohabitaram com os índios neste aldeamento, mas também negros e mestiços.

A devastação da floresta e os abusos causados pelos paroquianos, descendentes dos conquistadores, resultaram no desaparecimento dos "descendentes dos primitivos habitantes". A aldeia passou a ser dirigida por um chefe tirado dentre seus próprios habitantes. Foi eleito José Dias Quaresma, índio então elevado ao cargo de capitão-mór. Logo em seguida, Quaresma casa-se com uma negra escrava, sem o “pejo da infamia de ver seus filhos nascer captivos”, apesar da abolição da escravidão indígena. A 6 de Agosto de 1771 sua patente é cassada.

"Esse exemplo do capitão-mór, a sua vida toda contaminada de vícios, acabaram por aniquilar a aldêa de Ipuca, degenerando, corrompendo os filhos dos neophytos de fr. Francisco Maria de Todi, cuja educação tanto lhe mereceu. O vice-rei marquez de Lavradio, indignado por esse aviltamento, mandou, pela portaria de 6 de Agosto de 1771 dirigida ao ouvidor da comarca, Antonio Pinheiro Amado, cassar-lhe a patente, nomeando outro para substitui-lo; tirou aquelle exemplo vivo de tanto escândalo, puniu assim aquela falta de pundonor, porém não regenerou a moral perdida para sempre; o mal continuou, progrediu e só desapareceu quando a aldêa perdeu o ultimo de seu primitivo habitante e tornou-se uma simples povoação de Brazileiros e Portuguezes." (SILVA, 1852)

Em 1781, os Frades capuchinhos italianos Ângelo Maria de Lucca e Victorio de Cambiasca se estabelecem em Gamboa, localidade distante cerca de 50 km da Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, conhecido como "Sertão dos Índios Brabos" (Puris, Coroados e Coropós desalojados de suas terras pelo cultivo do café), bem destacado nos mapas antigos. Este local, onde seria posteriormente fundada a Aldeia de São Fidélis, estava inserido na antiga e extensa sesmaria dos jesuítas, a qual fora arrematada do reinado pelo capitão Joaquim Vicente dos Reis e seu sócio, Manoel José de Carvalho. Lá encontraram uma aldeia com cerca de 30 índios Coroado, os quais seriam levados para a Aldeia da Sacra Família de Ipuca pelo Reverendo Frei Antônio Maria de Veneza, Prefeito e Superior da Missão Capuchinha no Rio de Janeiro.

Pintura "Puris e Coroados", de  Hermann Burmeister - 1853.

Puris e Coroados - Hermann Burmeister - 1853.

Em 1798 foi abolido o Diretório Pombalino. A mesma carta régia que tornou nulo o diretório dos índios emancipou os índios aldeados, tornando-os “iguais” aos outros brasileiros. Os índios, ainda considerados incapazes de administrar seus bens (inclusive as terras de suas aldeias), tiveram seus bens administrados pelos Ouvidores da Comarca, sob custódia do Estado. 

 

A única citação dos cronistas feita à epidemia de “cezão” que acometeu a Aldeia da Sacra Família de Ipuca foi já nas margens do São João e teria sido um dos motivos da ruína da igreja. Muitas vezes sob a máscara de “epidemias”, o deslocamento de grandes contingentes da população nativa de um lugar para outro, como ocorreu nas Aldeias de Ipuca e da Sacra Família de Ipuca, as migrações forçadas, a conversão do índio através da catequese, a perda da liberdade e a eliminação de sua identidade tribal acabam por reordenar a ocupação do espaço do litoral fluminense, destruindo-se os núcleos indígenas tradicionais, relativamente autônomos, onde cada povo vivia de acordo com a sua própria cultura.

"(...) voltando os Indios aos antigos lares do Sertão, pela ausencia de quem os atrahira, beneficiava, e dirigia, foram-se distribuindo as terras à proporção que os pretendentes as requeriam, como devolutas, em consequencia, e conformidade da Ordem de 28 de Fevereiro de 1716 (accusada na nota (2) da memoria da Freguezia de Itamby, Liv. 2. Cap. 2.), sem se attender á necessidada da Igreja, para lhe rezervar uma porção, ainda que modica, do seu antigo patrimonio." (PIZARRO E ARAUJO, 1820)

 

Século XIX - Freguesia de Ipuca e Aldeia Velha

Em 1800, a Freguesia (Paróquia Encomendada) constituída pela capela-igreja da Sacra Família de Ipuca e suas almas é “elevada á classe das de natureza collectiva”, ou seja, declarada perpétua, dando-se-lhe por 1° Pároco Perpétuo o Padre Jeronymo Ferreira da Silva. A nova Paróquia limitava-se por todo o rio de São João, com as suas vertentes, desde o campo de Bacachá até o rio Macahé da parte do sul.

Apesar da importância da Freguesia de Ipuca e do conhecimento das ervas medicinais presentes na Mata Atlântica, os moradores começaram a padecer sob o efeito das epidemias, sendo obrigados a abandonar - novamente - a aldeia. No ano seguinte, 1801, com a Aldeia abandonada e a Igreja da Sacra Família de Ipuca em ruínas, fatores como as constantes epidemias, o retorno dos índios às selvas devido à má administração do capitão-mor e a ruína da igreja, fazem com que a sede da Freguesia seja transferida, desta vez para a foz do rio São João (Barra de São João), onde já havia a capela de São João Batista.

Foto da Capela de São João Batista - Barra de São João, Casimiro de Abreu, RJ

Capela de São João Batista - Barra de São João, Casimiro de Abreu, RJ - Foto: Divulgação/Prefeitura (16/05/2018). 

Os cronistas destacam duas citações: A primeira, de 1845, é que “o vigario teve de transportar a pia para a de São João-Baptista, na embocadura do rio de São-João, e debaixo do pretexto de ser doentio o sitio onde se achava a igreja d’Ipúca, não curárão de reedificál-a”. A segunda, escrita em 1820 e em 1854, é “que de todo se destruiu, por desleixamento total em razão da annual epidemia de cezões, que alli grassa, por ser pantanoso o sitio”. Estes autores relatam que, além da pia baptismal, foi mudado, também, o sacrário.

A capela de São João Batista, localizada "na barra do rio Ipuca" (o qual, portanto, é o rio São João), é elevada à categoria de Paróquia sob o nome de São João Baptista da Barra do Rio São João, enquanto se reedificava uma própria. Pretendeu o Pároco dar à Capela o título da Freguesia, substituindo com o nome de Sagrada Família o de São João Baptista da Barra do Rio São João, contra o que requereram os moradores à Sua Magestade pelo “Tribunal da Mesa da Consciencia, e Ordens”, em Agosto de 1818. 

 

Saint-Hilaire, citando Pizarro, fala que o vigário pretendia dar à capela de São João o título de Paróquia e substituir o nome de Sagrada Família pelo de São João Batista da Barra do Rio São João, mas que houve, em 1818, reclamações contra esse projeto. Além disso, comenta que o Monsenhor Pizarro até 1819 não teria dado notícia da decisão que a esse respeito deve ter tomado o governo. Porém, no nosso entender, o nome de São João Batista é que teria sido substituído pelo de Sagrada Família.

Saint-Adolphe (1845) comenta que “(…) porêm como os moradores da Barra-de-São-João se não concertassem com o vigario de Sacra-Familia, opposérão-se a suas pretensões e reclamárão para sua igreja o titulo da de Ipúca. Tal foi a origem da freguezia actual da Barra-do-Rio-de-São-João, que se não deve confundir com a villa de São-João_da_Barra, na embocadura do rio Parahiba". Esta passagem explica, além do nome, a confusão feita por J.N. Silva entre Barra do rio São João e São João da Barra. A freguesia fazia parte, em 1854, do então município de Barra de São João.

Saint-Adolphe explica como se deram os subsequentes desmembramentos das terras da Aldeia da Sacra Família de Ipuca:

"(…) No (ano) de 1802 seu termo, que era assás vasto, e se estendia grandemente para a banda do sudoeste, foi desmembrado para se fazer o da freguezia de Capivary; em 1809 tornou a soffrer outro corte da parte do norte, quando se creárão as freguezias de N. S. das-Neves e de Santa-Rita, na aldea dos Índios Guarulhos, e tornou a levar mais outro em 1812, na creação da nova freguezia de Juturnahiba. (…) O termo da freguezia d’Ipúca confronta, ao norte, com o de N. S. das Neves de Macahé, sobre o rio das Ostras; ao oeste, estende-se na cordilheira dos Aimorés até o de Nova-Friburgo; ao sul, péga com os de Capivari e de Juturnahiba; e a léste, entestando Oceano. Avalia-se actualmente (1845) o numero de seus habitantes em 3,000, que são sujeitos ás sezões grande parte do anno por causa dos paúes que existem nas terras chans. As autoridades locaes poderião tornar o paiz sadio abrindo numerosas sargentas nos campos, as quaes communicarião com os ribeiros e rios que desaguão no mar. (…)"

Segue a transcrição de Pizarro (1820: grifo nosso) sobre a criação da de N. S. da Lapa:

 

“Requerendo os moradores visinhos da Lagoa de Inhuturnuayba, entre o Rio de São João, e o de Capivary, e entre este e o de Bacachá, que pela distancia enorme d’um, e dois dias de viagem, e de jornada, sentiam os vivos gravissimas faltas de Sacramentos, e muitos incommodos em procura-los á Matriz da Sacra Familia de lpûca, de que eram parochianos, e pela mesma causa se impossibilitavam aos mortos os meios de serem conduzidos à sepultura ecclesiastica, por cujo motivo ficavam os cadaveres enterrados nas margens dos Rios, e n'outros lugares igualmente profanos; attendesse o R. Bispo à essas circunstancias, para lhes dar a providencia como Bom Pastor, e assás zeloso da felicidade espiritual de suas ovelhas, creando urna Parochia n'aquelle território, abundante de povo sufficiente: à vista da supplica, e das informações veridicas que precederam, deliberou o mesmo Prelado crear em nove de Outubro de 1801 a nova Freguezia, sob o titulo de N. S. da Lapa, em conformidade dos desejos dos mesmos suplicantes, dando-lhe por limites o terreno comprehendido entre a Serra, e o Rio Bacachá, que principia do Rio da Aldea Velha para cima. Por este modo ficou dividida com a Freguezia de Ipûca, pelo mesmo Rio da Aldea; com a de Cabo Frio, pelo Rio de São João da Freguezía de Iriruama, e pelo Rio Bacachá, e limites antes assinalados a esta mesma Freguezia. Com a da SSS Trindade balisou nas cabeceiras do Rio de S. João, e antigos termos; e ultimamente pela parte da Serra, ficáram-lhe as vertentes d'ella, comprehendidas entre o Rio sobredito da Aldea Velha, onde principiam os limites da Freguezia da Trindade. Como em todo o territorio demarcado não havia Templo algum em que tivesse lugar o exercicio parochial, além da Capella levantada na Fazenda de Maria Rodrigues; ahi principiou a parochiação, em quanto se fabricava nova casa no lugar pouco distante d’esse. Não me consta, até o fim do anno 1817, que esta Freguezia tivesse Confirmação Regia”.

De acordo com Pizarro (1820):

"(…) No anno de 1812 sofreu novo golpe, que o mesmo R. Bispo lhe deu, depois da criação da Villa de Macahé, desunindo-lhe todos os moradores da parte do Sul até a Lagoa de Boiassica para ajunta-los à nova Freguezia de São João da mesma Villa. Ficou portanto esta Paróquia (de São João Batista) situada toda no termo da Villa de Macahé com o terreno que se acha da Barra do rio de São João da parte do Norte, até a Barra do Rio denominado Aldea Velha, e d’ahi pelo mesmo Rio á cima da parte do Norte, até os confins dos Sertões despovoados da dita Aldea: e pela costa do mar, até a Lagoa de Boassica com os seus competentes Sertões."

Em 1813 é criado o Município de Macaé, abrangendo Barra de São João e Indaiaçu. Vinte e oito anos depois, pela Lei 239 de 1841 é criada a Vila de Capivari (Silva Jardim). As terras para a implantação do Município foram doadas por Luís Gomes, fazendeiro da região, e são decorrentes do desmembramento de Cabo Frio. O governo da Província aprova a demarcação dos limites da povoação de Barra de São João, 31 de Agosto de 1843.

O Decreto 426, de 24 de julho de 1845, mais conhecido como o “Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios”, depositava amplos poderes nas mãos dos diretores das missões, que encaravam a dupla missão de dar conta dos índios já aldeados e de “chamar à Religião e à Sociedade” os índios considerados errantes.

Em 19 de maio de 1846 é criado o Município de Barra de São João, cujo território foi desmembrado do Município de Macaé, tendo sido o arraial de Barra de São João elevado à categoria de Vila. Com o desenvolvimento da cultura do café na parte serrana, trilhas foram abertas para seu transporte. Mais tarde as Fazendas de Ipuca e Horizonte cultivaram a laranja e a Fazenda Indaiaçu o milho e a cana.

A partir de 1850 as terras dos índios destribalizados, “que já não vivem aldeados, mas sim dispersos e confundidos na massa da população civilisada”, começam a ser incorporadas aos Próprios Nacionais, por decisão do Ministério do Império. Em 1862 o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas considera que “muitos aldeamentos são formados de individuos que, pela mór parte, sómente de índios tem o nome” e que “os indivíduos pertencentes às aldêas não precisão mais de protecção immediata dos administradores”. A Diretoria das Terras Públicas autoriza, portanto, a extinção de vários aldeamentos, distribuindo a cada família, bem como aos solteiros maiores de 20 anos, um pequeno lote de terra para lavoura.

Por deliberação provincial, decreta-se, em 1866, a extinção de um dos últimos aldeamentos do Rio de Janeiro: a Aldeia de São Lourenço. Os índios que aí residiam foram considerados capazes de “entrarem no gozo dos direitos comuns a todos os brasileiros”. Muitos desses índios, cujas terras foram tomadas por fazendeiros, por outros particulares e pelas próprias Câmaras Municipais, vão migrar para a cidade do Rio de Janeiro - a Corte, onde continuarão a ser vistos como índios e serão discriminados, presos e reprimidos como “caboclos”.

Em 1881 se dá a abertura da Estrada de Ferro Leopoldina Railway e em 1888 a abolição do trabalho escravo. Estes dois episódios são responsáveis pelo declínio de grande parte das fazendas da região e do porto de Barra de São João. Neste momento, outros núcleos de povoamento surgem por estas bandas: Juturnaíba e Aldeia Velha, tendo esta última recebido colonos suíços e alemães que tinham vindo inicialmente como grupo de colonização de Nova Friburgo (1820).

Em 1890 a Vila de Barra de São João é elevada à categoria de Cidade. Em 1892 foi criado o distrito de Correntezas (a atual Aldeia Velha fazia parte dele), o qual foi anexado posteriormente à vila de N. Sra. da Lapa do Capivari.

Durante o século XIX, grandes fazendas foram construídas, com posição geográfica e arquitetura elaboradas especificamente para ocultar os escravos que seriam comercializados entre os diferentes municípios da região. Em muitos casos, o tráfico escravo interprovincial foi, sem dúvida, a mola propulsora para o enriquecimento dos proprietários, uma vez que a produção agrícola nem sempre justificava tal enriquecimento. A partir das últimas décadas do século XIX, com o fim da escravatura, que era a base de sustentação da sociedade cafeeira fluminense, a aristocracia se empobrece, já que não tem mais sua mão-de-obra e ainda vê a exaustão do solo e a redução das safras colhidas ano após ano. É o início da decadência gradual das fazendas produtivas.

 

Século XX - Nova Aldeia Velha

 

Em 1904 o Distrito de Correntezas, do qual Aldeia Velha fazia parte, passou a denominar-se Maratuan.

 

No início do século, grande parte da população do Município de Capivari é dizimada pela gripe espanhola. Sua recuperação, lenta, se dá apenas na década de 1920, com a produção de café e cereais. O desajustamento da economia (segundo o documento “Estudos para o Planejamento Municipal – Casimiro de Abreu”) do Município de Barra de São João ocasionado pela abertura da estrada de ferro e pela Lei Áurea causaram os repetidos deslocamentos de sua sede entre Barra de São João e Indaiaçu (povoação surgida ao redor da Estação da Leopoldina Railway), sendo a mesma definitivamente fixada, a 10 de Novembro de 1925, na última localidade. Nossos Mestres da Tradição Oral afirmam que a Estação de Indaiaçu foi criada por causa de Aldeia Velha, para escoar a produção oriunda da serra e que passava por Aldeia, o mais importante entreposto comercial da região.

 

Em 1926 foram desmembradas terras do Distrito de Correntezas para criar o Distrito de Bananeiras e anexá-lo ao município de Capivari.

Em Março de 1938 o restante do Distrito de Correntezas passou a denominar-se Aldeia Velha. Em Dezembro do mesmo ano, o Distrito de Aldeia Velha passou a denominar-se Distrito de Silva Jardim. No mesmo ano, Indaiaçu passa a se chamar Casimiro de Abreu, nome atribuído a todo o Município no dia 31 de Março. Barra de São João volta a ser considerada uma Vila.

 

Em 1943 o município de Capivari passou a denominar-se Silva Jardim, o Distrito de Silva Jardim (que era Aldeia Velha!) a denominar-se Quartéis e Bananeiras a denominar-se Correntezas (de novo!).

 

Em 1955 o município de Silva Jardim continua termo da comarca de Rio Bonito, com 4 Distritos: Silva Jardim, Correntezas, Gaviões e Quartéis.

 

Em 1990 o Distrito de Quartéis teve seu topônimo alterado para Aldeia Velha (de novo!).


A partir da segunda metade do século XX, diferindo da estrutura latifundiária extensiva do período colonial, a ocupação econômica caracterizou-se por processo acelerado de fracionamento do minifúndio, com o consequente aumento do número de pequenos proprietários. Ganhou expressão o cultivo da laranja, que veio substituir as culturas existentes, trazendo consigo pessoas de outras localidades, que passaram a adquirir chácaras na região.

POR FIM...

 

O povoado de Aldeia Velha concentra, desde o passado colonial, a função de ponto de encontro para os moradores das serras e lugar de memória e cultura para toda região. A população local hoje é formada pela miscigenação entre imigrantes suíços e alemães em sua maioria, e a população neobrasileira remanescente do aldeamento. Em pleno século XXI, é uma sombra de seu passado de tropeiros, traficantes de ouro, farmácias e fazendas de café, principalmente pelo forte exôdo rural, causado pela falta de emprego e geração de renda. Apesar disso, os que resistiram, abrigam uma forte cultura local, com um número significativo de artistas populares como poetas, músicos, contadores de causos, artistas populares, erveiros e moradores vindos de outros lugares do Brasil em busca da paz e da natureza.

REFERÊNCIAS

A maior parte da nossa pesquisa está embasada nos dados oficiais das prefeituras envolvidas nessa pesquisa e nas seguintes fontes primárias:

 

 

ABREU, C. Capítulos de História Colonial (1500-1800). 234 pp. Rio de Janeiro: M. Orosco & C. 1907.

CASAL, M.A. Corografia Brazilica ou Relação historico-geografica do Reino do Brazil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817.

PIZARRO E ARAUJO, J.S.A. Memorias Historicas do Rio de Janeiro e das Provincias Annexas a' Jurisdicção do Vice-Rei do Estado do Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1820.

 

SAINT-ADOLPHE, J.C.R.M. Diccionario Geographico, Historico e Descriptivo, do Imperio do Brazil. Tomo II. Pariz: Typographia de Pais e Trusot, 1845.

 

SOUSA SILVA, J.N. Memória Histórica e Documentada das Aldêas da Província do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. 3ª Série, Nº 14. Rio de Janeiro: IHGB, 1852.

 

CITAÇÕES ESPECÍFICAS:

*1 GASPAR, M.D.; BUARQUE, A.; CORDEIRO, J.; ESCÓRCIO, E. Tratamento dos Mortos entre os Sambaquieiros, Tupinambá e Goitacá que ocuparam a Região dos Lagos, Estado do Rio de Janeiro. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, 17: 169-189. SãoPaulo: USP, 2007.

*2 DIAS JR., O. F. Evolução da cultura em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. In: Schmitz, P.E. etal. (Eds.) Temas de Arqueologia Brasileira, Anuário de Divulgação Científica, 3: 112-130. Goiânia: Instituto Goiano de Pré-História, 1976/77.

*3 MALHEIROS, M. "Homens da Fronteira" - Índios e capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do Paraíba ou Goytacazes, Séculos XVIII e XIX. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2008.

*4 DEBRET, J.B. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Martins: 1965.

 

*5 CORDEIRO, J. Nem cães, nem lobos: os Guerreiros Goitacá. Pilares da História, Ano 3, n. 5, p. 55-68. Duque de Caxias: Instituto Histórico Vereador Thomé Siqeira Barreto e Associação dos Amigos do Instituo Histórico, maio/2005.

*6 LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1940.

Antes de mais nada: o que é "Ypuca"?

 

A palavra Ipuca, ou, do original, Ypuca, deriva do tupi-guarani e significa "buraco no igapó”. Igapó seriam trechos de mata inundado, pantanoso, que ocorrem em locais como as margens do rio Araguaia e região Amazônica. Provavelmente a palavra Ypuca, utilizada aqui na região Sudeste nessa época colonial, esteja relacionada às matas inundadas periodicamente no período das cheias de rios como o Rio São João.

 

POVOS ORIGINÁRIOS

 

 

Caçadores-coletores​-pescadores

A grande carência de estudos na região interior e região serrana do RJ, apontada por importantes e renomados arqueólogos, torna quase impossível desenhar hoje um sistema de assentamento para a região. Não se sabe quando exatamente começou este povoamento, mas é certo que há pelo menos 7.000 anos AP os grupos de caçadores-coletores já se deslocavam pelo território. No interior fluminense, só muito recentemente foram descobertos vestígios de seus acampamentos, atestando esta antiga presença.

Já no litoral do Estado, área intensamente pesquisada, são encontrados sítios como os sambaquis - locais onde populações indígenas pré-históricas acamparam, temporária ou permanentemente, para explorar os recursos litorâneos como material construtivo, ritual e alimentar sendo, portanto, acumulações artificiais principalmente de conchas de moluscos e, em menor escala, de ossos de peixes, mamíferos, répteis e aves.

 

Estes sítios seriam o testemunho arqueológico mais antigo existente para o Estado do Rio de Janeiro, representando a ocupação dos pescadores-coletores do litoral, os quais, segundo Gaspar et al. (2007)*1, “inauguraram a colonização da costa e, desta maneira, não disputaram o seu território com outro grupo social”.

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